30/09/2012

Consagração das tintas

Galeria de artes. Recepção. Um guarda-volumes. Um recepcionista. Porta de entrada. Fechada. No teto interno, câmeras de vigilância. No canto de entrada uma mesa e um computador. Nas paredes, telas. No chão alagado de tinta rala, uma geladeira, uma TV, um fogão e instrumentos de percussão. Sobre a geladeira, uma bailarina. Sobre o fogão, uma atriz. Meio aos instrumentos percussivos, um músico. Todos vestidos de branco. Congelados. Sob luzes. Quentes. Às paredes, cores frias. Os visitantes entram. Descalços. Vestem uma calça. De plástico. Preta. Alone vestido de branco carrega uma tela virgem. Tintas e sprays. Percorre o espaço. Despeja tinta nos instrumentos musicais. O músico começa a tocar. Ritmos indígenas. Dirige-se à bailarina. Tinta sobre seus pés. Ela inicia a dança. Passa pela atriz. Desenha uma letra na sua mão. Entrega-lhe um stencil com formas de letras. Ela declama. Alone percorre o espaço. Compõe a tela. Livremente. O pisar dos visitantes borram de tinta a tela. Alone entrega aos artistas sprays, tintas e pinceis. Preenchem a tela. O foco de luz sobre o músico intensifica. A música agita. Ritmos afro. A movimentação acelera. A bailarina roda. A atriz canta. As pessoas percorrem o chão de cores. Quinze minutos. Numa das paredes letrinhas surgem. Projeção de um texto. Um artista brasileiro. Outro estrangeiro. Pela internet assistem. Escrevem. Em tempo e hora. A consagração das tintas. Na terra do sol. Olhos vivos. Das câmeras. Dos homens. Máquinas. A luz sobre o músico diminui. Canções indígenas. Alone coloca a tela sobre o cavalete. Observa. Calmaria. Por quinze minutos. A luz sobre o músico intensifica. Alone compõe. As projeções continuam. Tudo se repete. Dança. Voz. Chão. Paredes. Cores. Respingos. Tinta. Fresca. O público sai. As portas fecham. Os artistas se vão. Deserto. Três dias. As tintas secam. Tumulto. Portas se abrem. Público. Nova tela. Espaço. Novo. Marginal. _______________________________________________________________________________________________ *Inspirado no projeto cultural "Virtualidade-espaço-marginal" idealizado pelo artista plástico Marco Túlio Valadares (set.2009), naquela época (((alone))). Hoje, SOMBRADOSER.

29/09/2012

Com-tons

Paredes azuis. Teto de madeira. Uma cama. Um armário. Uma mesa de vidro. Um banheiro. A menina acordou. Estava sozinha na casinha de adobe. Tonta de sono bocejou. Dormiu mais. Um barulho insuportável de cigarra a fez levantar. Viu formigas enfileiradas saindo da rachadura da parede. Parecia um cortejo fúnebre. Lembrou que era aniversário do enterro do pai. Toda a cidadezinha presente. O acusado fora condenado. Todas as noites ela buscava os santos de devoção. Rogava perdão para o pai, assassino do pai do seu assassino. Recordou do testamento deixado. Uma lágrima caiu. Como que se despertasse de um sono, atravessou a porta do banheiro. Tomou banho. Escovou os dentes. Vestiu-se de preto. Abriu a porta. O sol despontava. Era sábado. Saiu. A barriga roncou bem na hora em que passou perto da lixeira da praça. Um cheiro forte de bosta penetrou seu nariz. Náuseas. Atravessou a praça. Sentou-se no banco debaixo da sombra da mangueira. Ouviu Luiz Salgado na barraca de pasteis: “corre tamanduá, protege os seus filhotes...você vai ter que ser forte como é forte o carcará”. A música veio como um sopro divino, pensou. Aproximou uma mulher alta, couro sobre os ossos, cabelos brancos, olhos arregalados. Com voz rouca disse: “olhe, estou tentando vender esses quadros para comprar as tintas e terminar essa obra inacabada que há anos tento construir como os expressionistas construíam, com abuso de cores." A menina fechou os olhos. "Veja a foto em que me baseio. Foi tirada no Vale do Jequitinhonha.”, continuou a mulher, que espalhou os quadros sobre o chão. “Gosta de algum?" Com cara de bunda a menina permaneceu calada. "Quer comprar?” A pergunta elevou o seu estômago ao céu. Como um jato de tinta velha seu vômito atingiu o quadro. A mulher cuspiu no chão. Limpou a boca. Da voz rouca um trovão: “você destruiu um dos meus maiores sonhos." A menina pensou: "Tudo tem um ciclo. A sua construção não passou de uma ilusão. Uma espera que passou”.